mercoledì 2 novembre 2011

Czar naturalista

Anedota Búlgara
Era uma vez um czar naturalista que caçava homens. Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas, ficou muito espantado e achou uma barbaridade. Carlos Drummond de Andrade
O Arnaldo chegou no limite. Ontem, ele veio da rua me falando da Marta, a do 68. Moro entre 68 e 60. Eu era o 66. Quando ele começava com essa história da vizinha, era porque ele queria comê-la! Mal sabia o marido dela, o Ítalo, homem bem-sucedido, o ricaço da rua. Anedota Búlgara era a piada da vez. Meu marido era como aquele Czar naturalista, e eu, uma conformista por suportar seus blê-blê-blês. Essa merece contar... [Ontem. 18h30. Noitinha]. Helena, joga todas as sacolinhas de plástico que têm nessa casa! Mas que diabo, Arnaldo?! Que isso agora?! Helena, a Marta é uma naturalista! Ela está caçando as sacolinhas de plástico de todas as mulheres da rua. Se você for no supermercado, pega a minha sacola de pano, Helena! Dessa forma, você encabeça com a Marta a defesa do meio ambiente. Arnaldo, você pode me fazer um favorzinho antes de eu “encabeçar” a Marta?! Ah... Fala... Diz pra sua amada vizinha, porque ela não sabe, que o dono do mercado chega para o trabalho de helicóptero. E que essa geringonça para levantar voo bebe 500 litros de gasolina! E se ele estivesse preocupado com o planeta daria para as mulheres da “sacola de pano” uma sacola de papel... Mas Helena... Eu não acabei, Arnaldo! A Marta anda de carro não anda? Padaria. Farmácia. Feira. 100 metros e carro! Carro polui. Gasolina. Lataria. Plástico no painel. Pneu que dura nem sei quantos anos até a desintegração total. A Marta poderia comprar um cavalo. Olha só que pompa. A líder do ambiente a cavalo pela urbe paulistana. Mas Helena... Mas não! Arnaldo... Sabe as idas ao Iguatemi da Marta? Isso custa muito para o planeta. As incontáveis bolsas sapatos jóias... O esmalte da Marta... A tinta do cabelo. As roupas... Coitadinha, né, Arnaldo? E ela se espanta com caçadores de borboletas! Borboleta, Helena? É Arnaldo, borboleta! Helena, você anda muito hormonal... Saí da cozinha. Essa não merecia resposta. Voltei para minha leitura. Arnaldo voltou pra rua. O czar naturalista foi encontrar a caçadora de sacolas plásticas. Ele gosta do perfume dela... Consumo não polui? Deixa pra lá... Voltei conformada para a palavra... Comecei a escrever... Brisa da noite. Feixe de luz da lua. Insônia pra fora quer entrar. Entra que eu saio pra rua. Augusta. Consolação. Paulista. Praça Charles Miller. Cícero Pompeu de Toledo. Rodo vago e vejo uma sombra. Você. Falta coragem. Assopro e volto...

Niente pace

“As coisas têm peso, massa, volume, tamanho, tempo, forma, cor, posição, textura, duração, densidade, cheiro, valor, consistência, profundidade, contorno, temperatura, função, aparência, preço, destino, idade, sentido. As coisas não têm paz.” Arnaldo Antunes Avestruz. Vive de 40 a 60 anos. Pesado. Alto. Ovo enorme. Eu estou com mais de 50. Se eu fosse um avestruz, ou já teria morrido, ou estaria pra morrer. Com essa idade, descubro que um avestruz é alto... quase dois metros de altura... que seu ovo equivale a 24 ovos de galinha e que com ele faço omelete pra quase 20 pessoas. Quanto tempo faz que eu não vejo o Italo! Que saudade! Um aperto. Uma aflição. Sequei uma lágrima com a pontinha do dedo. Dei uma disfarçada. Ninguém vai ver. Amoitei a lágrima. Boa noite, Marta! Dei um “ciaozinho” tímido pra vizinha. A noite veio bem vestida de preto, com uma pedra de diamante. Era a lua cheia. Eu enxergava Marta querendo ver Italo. Fechei os olhos. Deitei no sofá. Como ele era lindo, meu Deus! O homem mais lindo que eu já conheci. Sorriso leve. Olhinho doce. O olhinho do Italo falava. Me dizia coisas... O olhar dele tinha voz. Olhos pulo-falantes. Pululantes. Olhei pela janela. Dez anos! Dez anos se passaram. A última vez que eu vi Italo... Era em uma noite de lua como a de hoje. Saí correndo do bar. Subi uma ladeira. O caminho era mais longo do que o esperado. Minha perna queria dar vários passos maiores do que ela conseguia. Tudo isso pra alcançá-lo. Coração-bomba disparou quando mirei aquele homem. Percebi que ele me viu. Disfarcei. Passo a passo fui chegando. Encostando. Hora do abraço. Abracei Italo mais forte do que eu podia. Meus pés choravam a altura dele. Cheiro de jaqueta nova. Jeans. Fiquei muda. Vontade de dizer. Não some, fica Italo... Fica mais um décimo de minuto! Mas as coisas não são assim. Felicidade talvez seja vaidade. Era trocar aquele amor pelo tédio da união. Vê-lo todo dia para começar a não enxergá-lo mais. Se ele dormisse comigo todos os dias? O sorrido dele perderia a leveza. Os olhinhos... talvez... perdessem o açúcar! As coisas não têm paz. Non c´è pace. Niente pace. Italo!... Italo!... Italo!... Helena, quem é Italo? Italo!? Arnaldo, você precisa ler mais! Italo Calvino. Il visconte dimezzato. Já leu, Arnaldo? Aqui no Brasil se chama O Visconde Partido ao Meio. Ele não conhecia nem em Português nem em Italiano. Comecei a contar pra Arnaldo a narrativa do romance... Um visconde que vai a guerra e, ao participar de uma batalha bastante dura e sangrenta, se vê ferido mortalmente. Ao ser jogado num carro de feridos do campo de batalha ele é partido ao meio. A primeira metade que aparece retorna a seu reino, fazendo todo tipo de maldade... A outra parte dele... Arnaldo, tá me escutando? Tô, Helena. [Mentira] Continuei contando a Arnaldo a história do livro. Fechei os olhos. Senti ainda o cheiro da jaqueta... Meu pensamento tocou a pele de Italo... como naquela noite... sorriso leve... olhinho doce daquele inesquecível homem. Helena, continua! Quê, Arnaldo?!

sabato 9 ottobre 2010

O rato

Carolina Tomasi


“[...] vamos direto ao ponto, eu amo a vida, eis a minha verdadeira fraqueza. Amo-a tanto, que não tenho nenhuma imaginação para o que não for vida. Tal avidez tem algo de plebeu, não acha? [...] Morre-se, se for preciso, antes quebrar que dobrar. Mas, eu, eu me dobro, porque continuo a me amar”
Albert Camus. A queda.

“C´est très simple: je l´ai découvert le jour où j´ai pensé à me tuer pour leur jouer une bonne farce, pour les punir, en quelque sorte. Mais punir qui? Quelques-uns seraient surpris; personne ne se sentirait puni. J´ai compris que je n´avais pas d´amis.”
Albert Camus. La chute.

Não tenho mais amigos. O prato rodava em cima da mesa. O rato roendo o pé da mesa. Roía minha roupa rota. Rota estava minha vida. Ruína. Rodízio de gente rodada. Eu, rasgada, rompida. Rato passava de novo, perto do meu prato. Levantei. Enrosquei no rasgo da minha saia rodada. Rugas no meu rosto. Reumática. Bom adjetivo pra mim. Cocô de rato e Coco Chanel misturados no ar. No chão da cozinha. Última gota. Xixi do rato rocambolesco. Tropecei no rodo. Retrocesso. Quase caí. Rum. Abri a garrafa. Tomei um gole.
O rato estava me incomodando. Uma ripada no rato era pouca. Eu e ele. Parecia que o rato quisesse rezingar. Retardo o passo. Medo do roedor. Veneno. Pego um resto de faca na gaveta. Enferrujada. Reservo. O repórter ia começar. Sem preocupação. Sem amigo. Sem telefonema. Sem rusga. Repenso. Ligo a TV no quarto. Volto pra cozinha. O rato tinha tomado o meu lugar. Na frente do prato.
Repescagem. Reinicia a disputa. Dois a zero pro Rato. Gordo. Repolhudo. Racomim. Rasguei o pacote. Rodava o rato de novo. Requintado. Ele queria comer no meu prato. Réquiem para o rato. Requentei a comida. De fria pra quente. Ovo. De mole pra duro. Resisto. De frente pro veneno. Respeito ao rato. Respingo vinagre na salada. Silêncio. Respiração do roedor. Acelerada. Abri a torneira. Boca ressacada. Retina seca. Meti a boca na saída da água. Fiz da mão uma concha. Água nos olhos. Retrocedo. Sento. Retrete de novo. Latrina suja. Da vida, revezes.
Enchi a colher. Revide. Retrospecto. Vi os amigos saindo da minha vida. Um a um. Ratazanas. Não rima. Tem ritmo. Derramei a colher dentro do prato quase vazio. Agora, cheio de Racomim. O rato rodopiava. Parecia que ele estava pressentindo. Roleta-russa. Eu ou o rato... Cansaço. Eu e o rato. Levantei. Ruge-ruge da minha saia pelo chão. Ruidosa. Rato ruim. Meu cúmplice. Se eu pudesse me suicidar. Um suicídio diferente. Que eu pudesse ver depois disso a cara de algum amigo, de um rato que fosse... Só assim compensaria pagar o preço da morte. Vejo o olho do rato. Pedindo perdão. Era meu lado cruel. Nem mais nem menos que a crueldade de meus amigos. Eu e o rato... ali. Sem perdão. Amo a vida: minha debilidade. Não me matei. Matei o rato. Matei-o com dignidade. Ele comeu o veneno no meu prato. De porcelana. Nojo de mim. Levantei. Retrocedi. Rato morto. Apaguei a luz da cozinha. Entrei no quarto. Outro rato.

O toque e a unha

Carolina Tomasi


“Uma efêmera sensação tátil, o contato delicado do sujeito com o outro – o veludo, a bochecha – é tudo o que resta quando não há mais nada a esperar. ”
Algirdas Julien Greimas

Tanta baboseira passava pela minha cabeça. Tudo muito confuso. A ideia era abrir a porta. Sair. O ritmo era outro agora. Ritmo de sofá. Silenciei a música. Até aquilo me incomodava. Tirei o sapato. O aperto não era no pé. Era no peito. Mexi os dedos do pé. A unha estava comprida. Hora de cortar. E o trim? Os objetos flanavam em casa. A bagunça estava dentro, estava fora. Assoei o nariz. Muita coriza. Joguei o lencinho sujo no chão da sala. Amanhã, a moça vem. Limpa tudo isso. Ainda bem que Arnaldo não está. Eu sujava ele limpava. O barulhinho do trim. As unhas caindo. Um vazio dentro de mim. Uma unha pulou dentro do meu sutiã. Piquenta. O meu dedo ficou procurando aquela unha perdida. No cantinho, quando o seio vira pele de novo... lá estava a unha. Pensei no meu pai. Aprendi com ele a usar o trim. Masculino. Trim é coisa de homem. De homem e de louco, toda mulher tem um pouco. Empurrei pra debaixo do sofá aquele monte de unha picada, solta. Elas fazem curvinhas. Parece uma lua crescente. A unha do dedão do pé... é a mais gorda, mais dura.
Deitei. Uma unha me picava as costas. Virei. Comecei a procurar a maldita. Tinha ficado um pedacinho ali... resistente... no tecido de bolas. Joguei aquela unha, minúscula lâmina, no chão. Me espreguicei. Silêncio. Barulho de marreta lá fora. A cortina balançava... batia no meu pé. Tentei fechar os olhos para esquecer. Pensei no Arnaldo. Era melhor esquecer. Esperar o Arnaldo era inútil. Só se espera o esperado. Desesperar era melhor. Ex-EsperoExaspero. Virei de bruço. Fechei o olho. Abri. Peguei o celular. Nada do Arnaldo. Era fruto da minha cabeça. Criei aquele Arnaldo. A gente cria pessoas. A gente cria o objeto. Depois, o vazio. Tinha criado um Arnaldo. Amável. Leal. Atencioso. Carinhoso. Companheiro. Desleal. Bruto. Grosseiro. Infiel. Garanhão. Comedor. Arnaldo do começo do meio e do fim. Três Arnaldos em um corpo só. Era uma mistura de tudo. Eu também não me conhecia mais. Era eu a mulher do Arnaldo: a do começo, a do meio ou a do fim? Jurei silêncio. Ele gostou do meu silêncio. Sumiu. Deixou a escova de dente.
Passava metade da minha vida perdendo remédio, batom, Arnaldo e a outra metade procurando Arnaldo, batom, remédio. Batom sem Arnaldo... Remédio por causa de Arnaldo. Quanto remédio a gente toma na vida por causa dos outros? O meu inferno sou eu e o outro. Muito de mim tem no outro e muito do outro está dentro de mim. Cada ml de omeprazol atribuo a alguém e o último ml a mim, gástrica de carteirinha.
Me virei de frente. As costas doíam. Não queria voltar para o computador. Tudo me lembrava o Arnaldo. A falta do torpedo. A falta do e-mail. A falta do toque. O toque do Arnaldo... O tato é o sentido mais profundo. É a união total. Toco o Arnaldo o Arnaldo me toca. Minha direção é o toque. Tocava Arnaldo... deixávamos de ser sujeito e objeto... éramos uma coisa só... pelo menos no instante do toque. Saudade de tudo. O meu espaço não era mais aquele. O meu tempo era outro. O agora me chamava. Tinha de escrever. Nem aqui nem agora me interessavam mais. Eu era outrora e alhures. Levantei do sofá. Dor na sola do pé: uma picadinha. Levantei a sola pra ver. Era um caco de unha me picando. Na cozinha, um pedaço de pizza fria. Abri o computador. O conto precisava começar.

mercoledì 6 ottobre 2010

Bem de amar alguém

Carolina Tomasi


“[...]
não se decide amar e nem a quem
ninguém comanda a tentação que tem
cupido não divulga quando vem
deixando o alvo tenro sem porém
[...]
amar alguém não tem explicação
não há como conter um furacão
os corpos vivos sofrem atração
apaixonados não têm coração
[...]
querer acaba quando já se tem
amar é só continuar querendo
embora cause tanto sofrimento
amar alguém só pode fazer bem
[...]”
Arnaldo Antunes

“Toalha molhada
Lâmpada acesa
Cidade parada
Tudo é você”
Adriana Calcanhoto

Tudo parado. Cidade parada. Luz desligada. Cortaram a força. Arnaldo se esquecia de pagar as contas de casa. Toalha molhada na cama. Vela no chão. Tv desligada. 130 km de congestionamento na cidade. Eu preciso do beijo do Arnaldo agora! Tudo era ele. Coisa ruim era ele. Coisa boa era ele também. Noite chegando. Nuvem de chuva. Tarde apagando. Eu preciso do beijo dele agora! Onde ele andaria? Celular sem sinal. O dele. O meu sempre tinha. Ele nunca me ligava. Ele aparecia. O beijo dele. Eu queria agora! Acendi mais três velas. Uma pra mim. Outra pro Santo. Outra pro apagão por falta de pagamento.
Banho frio. Cortaram a Light. Medo de cair. Escuro. Medo de água gelada. O desejo do Arnaldo acabou quando ele me teve. Peguei o celular. Disquei. Apertei o verde. Me arrependi. Apertei o botão vermelho. Desisto. Era só esperar. Só não. O só parece pouco. Esperar não é pouco. Pouco pra quem tem de fazer. Eu tinha de esperar. E Muito! Muito pra quem espera. Pouco pra quem faz... Ele tinha que vir e me beijar. Agora!
Já passa da hora. Eu preciso do beijo dele agora! Era só ele continuar querendo me amar e estava tudo resolvido. Tudo seria muito. Excesso também não dá. Amar o Arnaldo me causa sofrimento. “Mas”. Por que sempre tem de ter MAS, PORÉM, CONTUDO, TODAVIA?... Mas amar Arnaldo só pode me fazer bem. Eu preciso do beijo dele agora! Só se eu fosse procurá-lo por São Paulo inteira mesmo tendo de enfrentar 130 km de congestionamento. Madrugada afora. Tudo era Arnaldo. O cheiro dele pela casa inteira. Ou eu me contentava com o cheiro dele no lençol, ou eu saía por aí. Eu não decidi amá-lo nem tive o aviso prévio do meu cupido. Agora, aguenta, Helena! Não tinha explicação.
Peguei a toalha molhada. Me esparramei na cama. Vento na janela. Botei a cabeça pra fora da cabeceira. Não dava pra ver o teto do quarto. Eu quero o beijo dele agora! Parece canção de novela... Cheirinho dele no travesseiro. Não dava pra conter. Furacão. Tentação. Esperar o Arnaldo e nada mais. Apaixonados têm pouco coração.

lunedì 30 agosto 2010

EFIGÊNESIS

Carolina Tomasi

“Cada pessoa tem que escolher quanta verdade consegue suportar.”
Nietzsche

É difícil. Veja o que é capaz de suportar! Difícil também é arrumar as roupas do Arnaldo no guarda-roupa. Difícil ainda é acordar sempre com a mesma pessoa ao lado. E ter o mesmo prazer do início. Arnaldo, tô com crise de gastrite! A crise era da convivência e da conveniência. Toma malox, Helena! Haja suco gástrico e pastilhas antiácidas...
Almoço na casa dos parentes do Arnaldo... Pé no saco! Outra questão difícil. Tia, mãe, pai, sobrinhos, gato, papagaio, galinha de angola. Família... O nosso inferno são os outros e a família, sobretudo. E nós também, com nosso lado A e lado B... Arnaldo, neste domingo não vou na sua mãe! Tá, Helena! Ele nem ligava mais. Agora... se o Palmeiras perdesse... Quinze anos juntos. Na merda e na tristeza... O fim estava bem longe... Convites de casamento poderiam ter data de fim. “Senhores, convidamos para o desenlace no dia tal na Rua Augusta...” Lista de casamento só no divórcio... quando a casa inteira está quebrando: copo do liquidificador rachando, chuveiro queimando, boca do fogão entupindo, pratos lascando, garfos entortando, panela amassando... Inexorabilidade das coisas. Fim das coisas... Tudo partindo... Se-xo no Ca-Lendário. {com AR-NAL-DO}
No início, era à luz de vela até se extinguir. Agora, luz apagada. Tudo rápido como aquele cometa que ninguém viu passar... [Com Italo... era bem diferente].
A vida em casa: tédio. Na rua, eu me divertia. Arnaldo nem percebia [ou fingia]. Eu, como escritora, era uma fingidora. Ele, como leitor, era crédulo. Dois crápulas. Tudo estava no contrato. Tabelião número 34. Cartório Civil. Testemunhas. Vou lançar a teoria do casamento sórdido. Sai uma noiva toda de branco em seu carro... passa o “Lapa-Penha” e salpica-lhe o vestido. Prenúncio de um casamento falido... À espera do esperado.
Divorciar não era o caso. Fingir era melhor. Separar casa. Separar contas. Separar dívidas na conta bancária. Divisão dos TRENS: conjunto de pratos OXFORD “lascados” pra um, talheres de prata “arrebentados” pro outro, frigideira “cascuda” pra um, panela de pressão “sem válvula” pro outro, lençol “furado” sem as fronhas pra um, toalhas de banho respingadas de “cândida” pro outro... Divisão de mazelas... Sem contar os CACOS eletrônicos. Como colecionamos tanta coisa ruim durante a vida!?
Separar... uma boa solução... ou não. Melhor fingir? Talvez! Eu falo e ele acredita. Ele escreve e eu aceito. Tudo está no contrato.
Sem contar as escapa-delas... as espa-“cadelas”. A minha eu garantia. Arnaldo também. Homem é homem...
E mulher é mulher...
E criou a MULHER o HOMEM; e o HOMEM a MULHER criou. E foram infelizes para quase sempre.

martedì 3 agosto 2010

Casal imperfeito

Carolina Tomasi

“O nosso amor é tão bom.
O horário é que nunca combina.
Eu sou funcionário.
Ela é dançarina.
Quando pego o ponto.
Ela termina.”

Chico Buarque


Ele dizia hoje. Ele dizia amanhã. Ele madrugava. Ela não sabia que horas ia levantar. Ele tomava leite. Ela bebia café. Ele limpava. Ela sujava. Ele fazia amor. Ela fazia sexo. ElAElelaEle. Ele, do Bixiga. Ela, da Barra Funda. Ele fazia rimas. Ela construía poesias. Ele comia. Ela jantava. Ele falava inglês. Ela falava francês. Ele comprava. Ela consumia. Ele estudava. Ela lia. Ele andava. Ela caminhava. Ele gerou. Ela pariu. Ele escrevia. Ela anotava. Ele notava. Ela observava. Ele conversava. Ela discutia. Ele votava. Ela justificava. Ele masturbava. Ela penetrava.
Ela, tristeza. Ele, alegria. Alegria era ela. Tristeza era ele. Ela degustava. Ele bebia. Ela era mundo. Ele era bairro. Ela dirigia. Ele conduzia. Ela gostava de gato. Ele amava cachorro. Ela era gosto. Ele era amor. ElAElelaEle. Amor era ela. Gosto era ele. Ela gozava. Ele desfrutava. Ela tirava férias. Ele tinha folga. Ela gritava. Ele sussurava. Ela dissimulava. Ele mentia. Ela tinha renda. Ele tinha salário. Ela ouvia música. Ele ligava o rádio. Ela fazia som. Ele produzia ruído. Ela tocava. Ele aplaudia. Ela cantava. Ele cantarolava. Ela digitava. Ele deletava. Ela acelerava. Ele brecava.
Ele deitava. Ela levantava. Ele vestia. Ela despia. Ele achava. Ela perdia. Ele vivia. Ela morria. Morria ele. Vivia ela. Ele, homeopatia. Ela, alopatia. Ele, chá. Ela, coca-cola. Natureza era ele. Cultura era ela. Ele era ar puro. Ela era fumaça. Ele nadava. Ela bebia. Ele era pai. Ela era mulher. Mulher era ele. Viril era ela. Ele temia. Ela enfrentava. Ele dançava. Ela sambava. Ele balbuciava posso. Ela urlava não posso. Ele: agora. Ela: daqui a pouco. Ele queria. Ela não queria. Ele, verdade. Ela, verossimilhança. Ele era surdo. Ela era sonora. Pele. Bela. Ele, pele. Ela, bela.
Levantavam.Deitavam.Dormiam.Acordavam. Faziamsexo.Seamavam.
Seperdiam.Sencontravam. Limpavam.Sujavam. Almoçavam.Jantavam. Dançavam.Cantavam. Bebiam.Comiam. ElAElelaEle: imperfeitos. Conjugavam a vida. Viviamorriam. Elela era um casal imperfeito: aCASAlaMento. Viveram quase felizes. Não para sempre. Quase sempre infelizes... até que a vida os separasse e a morte os unisse na cova 75 do Araçá, São Paulo, Capital, 26 de maio de 2010.